Preservação histórica dos games - uma outra forma de enxergar o tema

#Artigo Publicado por akelekeve, em .

Com a recente notícia de que Silent Hills foi cancelado e que seu companheiro experimental P.T. será retirado da PSN, eu penso: quem vai preservar isso aí? Quem além de nós, que consumimos isso tudo, se importa tanto a ponto de achar que talvez mais pessoas devessem poder jogar o que é discutivelmente o melhor jogo de terror da última década? Quem comprar um Playstation 4 mês que vem não vai poder mais fazer isso. Quem tem o costume de comprar videogame depois de anos, só após ele ter uma ludoteca com uma quantidade razoável de títulos mais baratos, não vai poder jogar P.T. Só quem teve o console nessa janela específica de oito meses, pouco após seu lançamento, é que vai poder jogar - isso se não apagar sem querer ou precisar formatar o videogame devido a alguma atualização fodida da Sony. O jogo vai ficar registrado historicamente apenas em vídeos do youtube e textos. Vai virar lenda.

Todo mundo pode jogar Super Mario Bros hoje, trinta anos após seu lançamento. Mas será que os jogos de hoje serão jogáveis daqui a trinta anos? Se depender das empresas que os distribuem, não. E não digo isso nem pela retrocompatibilidade, apesar de também ser um sintoma - digo porque quem garante que os servidores da Sony e da Microsoft vão estar online daqui trinta anos, nos dando acesso às cópias digitais que compramos hoje? Ninguém garante. A maioria dos jogos não tem a sorte e a popularidade de receberem remakes para a próxima geração, também. Esses jogos estão fadados a existir apenas no "agora", em situações muito específicas, e todo o valor que eles tem será perdido daqui dez anos, quando não for mais "agora". O Extra Credits também tem um vídeo muito bom sobre esse assunto, que saiu lá em 2012. Podem assistir aqui:

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Jogos online também sofrem muito com isso - embora muitos fãs façam questão de manter servidores de coisas antigas mesmo depois dos oficiais irem pro saco, isso acaba sendo ilegal. Um grupo tentou lutar contra esse tipo de coisa, mas infelizmente não adiantou muito. Pois é.

E quem pode impedir isso são as pessoas que geralmente são vistas como vilãs. O pessoal que quebra segurança de videogame, que "viabiliza pirataria" e "não respeita propriedade intelectual". Respeita sim. Respeita mais que os donos dessas propriedades intelectuais. Os programadores que fazem emuladores apenas por hobby e prazer, e que dedicam um tempão das suas vidas no desafio de tentar fazer uma máquina funcionar dentro de outra. O pessoal que quebra a segurança do videogame e faz com que ele além de rodar jogos, também seja útil pra outras coisas. Eles não são vilões. Eles prestam um serviço cultural e histórico muito maior do que qualquer empresa grande que só financia o "agora". Se alguém que comprar um Playstation 4 tiver a chance de jogar P.T., será graças a essas pessoas que quebram a segurança do console pra que ele possa rodar jogos "piratas".

Os emuladores são importantes. Pessoal adora dizer que "antigamente é que tinham games de verdade!!" ao mesmo tempo que tentam esconder que a emulação existe por ser um procedimento "ilegal". Eu e muitos de vocês e seus filhos só terão e tiveram acesso a diversos jogos e marcos culturais da indústria graças a emuladores, graças ao pessoal que ama tanto isso que gosta de praticar seus dons em coisas relacionadas. Por muito tempo frequentei os fóruns do Dolphin, um famoso emulador de Wii e Game Cube, e vi a paixão dos seus desenvolvedores pelos jogos. O esforço quando aparecia algum lançamento que não emulava direito, o trabalho coletivo pra consertar isso, todo mundo junto, só pra poder dar mais opções a quem queria colocar as mãos naquele jogo. Discutir pirataria lá era proibido. O pessoal comprava os consoles e os jogos originais e preferia jogar no computador mesmo - por qualquer motivo que fosse, desde achar mais confortável até pra ter a opção de jogar em resoluções mais altas. Inclusive eu recomendaria a qualquer um jogar Skyward Sword e Xenoblade Chronicles no Dolphin e não no Wii (ou pior, no 3DS).

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hacker destruindo a indústria dos videogames através de emulação

Enquanto alguns querem apenas ver os jogos rodando, outros se dedicam pra fazer rodar direito. Esse artigo já conhecido conta os motivos e a importância de um rapaz querendo fazer um emulador perfeito de Super Nintendo. Será que uma coisa dessas é feita na maldade? Será que é feita pra tirar o dinheiro da Nintendo? Não, é claro que não. As pessoas fazem porque elas podem. E é óbvio que se você comprar um Super Nintendo com Super Mario RPG hoje em dia o dinheiro não irá pros desenvolvedores, o valor que isso terá é completamente subjetivo.

Recentemente começou a ir pra frente um emulador de Playstation 3 - a passos de bebê, mas existe e tem uma equipe por trás. Algum tempo atrás foi dito (de modo errôneo, inclusive, mas a esperança permanece. Obrigado Luísa por apontar nos comentários!) que os consoles dessa geração poderão ter emuladores de modo muito mais fácil, visto que a arquitetura deles se assemelha mais a um computador pessoal padrão do que a do Playstation 3 - criando até, talvez, um círculo de "ports não-oficiais". É claro que existem barreiras legais e morais pra isso, mas a questão é que quanto mais exclusivos se tornam refém de grandes empresas nessa época em que dependemos delas pra consumi-los, mais efêmeros eles se tornam, podendo sumir pra sempre sem ninguém mais ganhar acesso.

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Eu suponho que todo mundo aqui, sem querer forçar a barra do pedantismo, tem um apreço e um carinho pela mídia. A gente sabe a importância cultural dos jogos - especialmente numa época em que tanta gente martela o peso de suas "políticas" o tempo todo. Não é justo que coisas se percam em limbos executivos. Coisas que poderiam divertir e ajudar alguém que as encontrasse anos depois.

Sem a ajuda de emuladores e outros meios "ilegais", ninguém no ocidente que não sabe japonês poderia jogar Mother 3 - ou mesmo o primeiro Mother, já que foram os fãs quem traduziram. Algumas pessoas gostam de jogar RPGs japoneses, mas não gostam do trabalho de dublagem ocidental, e graças a consoles desbloqueados eles podem jogar versões com a dublagem original e acabar curtindo mais o negócio. Um dos jogos que eu estou mais ansioso pra jogar - Moon - está dependendo de uma tradução, também - pois só saiu no Japão, pro primeiro Playstation, através de uma empresa pequena, e também vendeu mal lá. Suas cópias originais são vendidas por pelo menos cem dólares no eBay.

Até coisas que influenciam o futuro e presente dos jogos estão atreladas a emulação - perguntei para Mário Santos, um amigo meu e grande desenhista de pixel art, se os emuladores ajudaram as pessoas a criar amor pela pixel art, visto que televisores antigos interpolavam as imagens e ninguém via os pixels realmente. Ele respondeu o seguinte:

"A emulação ajudou a popularizar o pixel art através da possibilidade de nostalgia imediata, mas não está necessariamente atrelado ao conceito de "nostalgia". Ela fez com que o pixel art nu e cru, sem filtros, se tornasse um recurso estético. Antes os pixels eram escondidos por interpolações, agora eles são reforçados por estarem atrelados a conceitos de 'coisa clássica', 'dificuldade' e 'coisa que vai muito trabalho e amor'. Isso foi graças à emulação. O amor pelo pixel art como recurso estético nasceu mais como um efeito colateral da nostalgia que a emulação proporciona, do que uma afeição intencional pelo formato em si."

Além disso tudo, a comunidade de speedruns também se beneficia muito dessas coisas - talvez não os mais puristas, afinal, todo mundo que joga em eventos como o Games Done Quick joga no próprio console - mas a comunidade que programa os "TAS" (Tool-Assisted Speedruns [ou seja, a comunidade que procura a perfeição de comandos e frames em prol de fazer um speedrun perfeito e daí programam bots pra apertar esses botões nos momentos perfeitos]) usa, também, emuladores e computadores, além de consoles "quebrados", pra fazer essas coisas.

Inclusive, abro aqui uma pequena tangente pra dizer que Rachel Bryk, uma desenvolvedora do Dolphin - que trabalhava justamente, entre muitas coisas, em prol de criar ferramentas para o pessoal do TAS - faleceu aos vinte e três anos no dia 25 de abril de 2015. Vocês podem ler uma bela homenagem a mesma aqui, no próprio site do Dolphin, de gente que acompanhou suas lutas e se tornou melhor por acompanha-las. Descanse em paz.

Jogos antigos não podem ser perdidos, e por mais que a tecnologia avance, sempre é bom de encontrar um jeito de recuperá-los e fazer com que rodem em hardware novo. Gostando ou não dos jogos modernos, é inegável que eles também são um marco de sua época e ninguém deve perder o direito de jogá-los por nascer atrasado. Como eu disse antes, nem todos os jogos recebem um remake para as novas gerações pra poder sobreviver mais um pouco - a grande maioria mais humilde e sem tanto investimento dessas grandes empresas corre o risco de nunca mais ser encontrado - com maneiras cada vez mais dracônicas de proteger o produto original e evitar roubos.

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"Que legal este game, mamãe! Só posso jogá-lo graças ao advento dos emuladores!" - Zeca, 7 anos

A única esperança que temos de jogos modernos existirem daqui vinte anos são justamente essas pessoas que fazem as coisas sem nenhum retorno financeiro, só porque gostam mesmo. Que criam emuladores e gostam de quebrar códigos. Que gostam de jogos e gostam que outras pessoas tenham acesso a esses jogos. É claro que muita gente acaba usando esses produtos de má-fé, mesmo, roubando coisas das quais tem fácil acesso e tudo o mais, porém a essência não está errada, e, sendo intencional ou não, estão fazendo um trabalho de preservação muito maior do que qualquer HD Remaster.

No fim das contas esse post é só um grande agradecimento a todo mundo que trabalha em prol disso e pra desmistificar um pouco essa área "cinza" da coisa, da qual vejo muita gente se podar na hora de falar com medo de ser ilegal. Ninguém deve evitar comprar produtos originais - especialmente porque videogame não é uma necessidade, é um luxo. Ninguém "precisa" jogar videogame. Mas os emuladores já fazem parte da nossa cultura e muitas vezes acabam sendo o único meio de se ter algo. A tendência é precisarmos cada vez mais de serviços de terceiros pra preservar o que os serviços primários tratam com tanto desdém. E não há nenhum motivo pra sentir vergonha disso.

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, Itajubá, Minas Gerais, Brasil