Uma história de violência

#Notícia Publicado por daniel boone, em .

"Violence isn"t always evil. What"s evil is the infatuation with violence" " Jim Morrison Elephant, curta-metragem de Alan Clarke produzida para a BBC2 em 1989, permanece como um fortíssimo testemunho do absurdo da violência. Integrado no seu contexto histórico, a obra poderia ser interpretada enquanto perturbador manifesto pela paz na Irlanda do Norte; pelo seu minimalismo, contudo, atinge a intemporalidade, reduzindo as suas personagens e situações à mais profunda humanidade de forma contraditória.

Existe um estranho tom documental, onde são mostrados, através de peculiares e marcantes planos-sequência e um longo e final plano fixo sobre a vítima, uma série de homicídios - é esse o inexistente fio narrativo: a repetição da morte. Quase não há diálogos, e a ausência de música cria um silêncio ensurdecedor. Os assassinos e as vítimas encontram-se quase no mesmo plano: não sabemos os motivos que as levaram à morte, os gestos não demonstram emoção, não há qualquer sentido de culpa, castigo ou redenção. Apenas assistimos ao acto em si, sem concessões. A morte torna-se quase quotidiana e banal em Elephant, e por isso revoltante e angustiante. Através do vazio e dureza que atravessam o filme criam-se precisamente os sentimentos opostos no espectador. Ã uma experiência visceral e seca, contraditória e contrastante a cada segundo, difícil de assistir. Torna-se impossível compreender aquilo que não tem compreensão.

Mas este não é um artigo sobre Cinema. Existe um bug em Perfect Dark (Rare, 2000, Nintendo 64) que o aproxima perigosamente do filme de Alan Clarke - na missão Air Force One o jogador deve assassinar o presidente, contrariando directamente os objectivos impostos; os seguranças que o protegem ficarão agora imóveis. Esta não é uma experiência que possa ser reproduzida através de texto, é obrigatório jogar para a compreender plenamente. Ã também necessário desligar todos os efeitos acessórios que preenchem o ecrã, desligar a banda sonora, retirar qualquer indicador de mira e munição.

Por se tratar de um First-Person Shooter, é criada a sensação de uma espécie de plano-sequência interactivo, onde a nossa visão e a da personagem que controlamos se (con)fundem. Por si só, este é um dos principais motivos que torna este género num dos mais imersivos do mundo dos videojogos. Perfect Dark é um título com uma narrativa ténue e linear, mera desculpa para os locais que visitamos e inimigos a abater; porém, ainda que restem apenas vestígios de uma história que sirva de fio condutor, graças a este bug eles desapareceram agora por completo. Existe apenas a situação (uma agente infiltrada), o local (o avião privado do presidente), as vítimas (o presidente e os seus seguranças). O jogador é o assassino. A lógica do jogo é corrompida - o presidente deveria ser salvo e não morto -, os antigos inimigos não oferecem razões para ripostarmos - deixam de existir razões para disparar. Fazê-lo, premir o gatilho - o botão - não faz agora qualquer sentido. A experiência ganha contornos bizarros e expõe a crueza de uma violência virtual irreflectida e irrelevante. Ã algo que se assemelha a um jogo experimental, como JFK Reloaded ou Super Columbine Massacre RPG.

A violência encontra-se hoje omnipresente nos videojogos. A morte virtual pode ser indolor, irreal, e até divertida, mas deve ser reflectida se esta indústria pretende ser reconhecida com seriedade, e não envolta em polémicas de pais moralistas e órgãos de comunicação conservadores. A tecnologia permite cenários virtuais cada vez mais semelhantes à realidade; o Wiimote pode servir aqui de exemplo como protótipo de uma nova forma de jogar, que requer um maior envolvimento físico do jogador. A versão Wii de Manhunt 2 poderia permitir simular quase gestualmente os homicídios cometidos pela personagem, transpondo esse espírito de filme snuff para o outro lado do ecrã. A serra eléctrica de Gears of War tornou-se num objecto fetiche dos fãs do título da Epic Games. A competição brutal de The Club é até certo ponto reveladora do circo de diversão muitas vezes imaturo que se encontra certas vezes ligado ao mundo dos videojogos. Qual será o limite da representação gráfica da violência num meio que se quer livre mas cada vez mais cercado pelo espectro da censura devido aos seus excessos?

daniel boone
daniel boone
Publicações em Destaque