A história de Half-Life, pela visão de Marc Laidlaw

A história de Half-Life, pela visão de Marc Laidlaw

Escritor de Half-Life e Half-Life 2 conta como foi escrever uma das maiores narrativas no gênero FPS.
#Artigos Publicado por Gabr1elKK, em
SPOILER
Esta entrevista trata do enredo de Half-Life até Half-Life 2: Episode 2, então haverão fortes spoilers sobre sua narrativa

"Eu estava maluco", diz o escritor de Half-Life, Marc Laidlaw, sobre sua decisão de postar a história de Half-Life 2: Episódio 3 como uma fanfic. "Eu estava vivendo em uma ilha, totalmente desligado dos meus amigos e da comunidade criativa nas últimas duas décadas, estava totalmente fora de contato e não tinha ninguém para me falar o contrário. Parecia uma coisa divertida de se fazer... e então eu fiz."

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Laidlaw descobriu essa comunidade pela primeira vez em meados dos anos 90, no escritório da Valve, onde Gabe Newell e sua equipe já estavam trabalhando em Half-Life.

"Eu tinha visto algumas partes dos níveis em que eles estavam trabalhando, mas assim que ouvi o nome, senti algo incrível em mim. De alguma forma eu podia ver o universo todo que eles planejavam e senti que era uma visão coletiva. Esta é uma das razões pelas quais é tão estranho para mim quando as pessoas tentam atribuir a mim a autoria que eu nunca senti. Estava tudo lá quando eu cheguei, num estado embrionário."

Half-Life já era reconhecível como o FPS que mudaria tudo para sempre: o desastre no laboratório do governo, a brecha dimensional, a batalha para chegar até Xen e acabar com uma invasão alienígena. Originalmente a Valve planejava contar a história de uma forma mais tradicional por meio de cutscenes em terceira pessoa e cinemáticas. Mas quando o tempo acabou, a equipe dobrou a perspectiva ininterrupta em primeira pessoa e encontrou o que deixaria tudo ainda melhor.

"A principal ideia da narrativa em primeira pessoa era como não acordar você de um sonho, como se você estivesse naquele mundo o tempo todo, sendo o protagonista daquela história. Você deveria estar sozinho neste vasto ambiente assustador, mas também sozinho em sua cabeça, e você poderia ser quem você quisesse dentro daquele mundo."

Essa solidão tornou-se uma característica definitiva na campanha, que só concedia a você amigos temporários - uma sucessão interminável de ligações com uma IA. Na verdade, pelos padrões dos jogos atuais, existe pouco diálogo em Half-Life. Em vez disso, Laidlaw fez com que a equipe de desenvolvimento explicasse as histórias que eles estavam tentando contar e os ajudou a resolver problemas na narrativa através do level design.

"Muitas armadilhas, desvios, obstáculos e momentos ocasionais de progresso no mapa. Um bom level design conta sua própria história. Você não precisa de NPCs aparecendo para lhe dizer o que fazer se a sua gramática visual estiver clara o suficiente. Então quando os personagens aparecerem, eles poderão dizer suas linhas de diálogo que os façam se sentir como personagens de verdade em vez de placas de sinalização."

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É essa abordagem que resultou no fluxo que é a marca registrada de Half-Life e seu ritmo perfeito - além das clássicas partes de comédia negra onde os cientistas eram puxados para o teto ou dutos de ventilação, e então arrotados em pedações pelo chão. A ficção contínua e consistente de Half-Life te deixava com a sensação de que estava passando por uma seção transversal de um mundo maior, em vez de um conjunto de níveis curtos e rápidos. Em nenhum outro momento isso é mais visível do que na famosa abertura do jogo, onde Gordon Freeman viaja de bonde pelo seu local de trabalho pouco ortodoxo e intimidador. Isso aconteceu quando Laidlaw e o designer de níveis Brett Johnson decidiram consertar algumas das áreas arruinadas do laboratório e apresentá-las para o resto da equipe.

"Isso resolveu o problema de como começar o jogo. A ideia até aquele momento era começar o jogo imediatamente após o desastre, quando a fumaça se dissipou. Mas depois de todo o trabalho de construir níveis destruídos, parecia um desperdício não aproveitarmos mais essas áreas. Em seguida, trabalhamos de trás pra frente para concretizar os eventos anteriores ao desastre. Todas essas formas econômicas de contar história com a arquitetura que era a minha obsessão. A narrativa tinha que ser contada nos corredores."

Os NPCs em Half-Life eram primordiais. Além do misterioso G-Man, todos os outros personagens estavam repetindo arquétipos - cientistas e seguranças que compartilhavam as mesmas vozes. Para Half-Life 2, Newell encarregou a equipe da Valve de atualizar esses personagens, transformando-os de autômatos para pessoas - desenvolvendo características faciais realistas e bocas que se movimentavam da forma certa para combinar com suas falas. Para isso a equipe de narrativa precisou escrever uma história que trabalhava em conjunto com essas ideias, com diálogos maiores e melhores para tornar os personagens mais ricos. Como resultado, o escritor e sua equipe receberam Gordon na família de Eli e Alyx Vance. Naquela época, era uma grande reviravolta - os jogos de ação não tentavam se envolver com um ambiente tão "doméstico", mas Laidlaw considera a família a "unidade dramática básica".

"Procuramos maneiras de unificar os personagens e dar mais coerência a experiência. Conforme revisamos os contornos da nossa história, muitos personagens de repente acabaram se relacionando."

A equipe científica mais ampla de Black Mesa também se tornou um tipo de família, apesar de mais disfuncional. O cientista genérico de Hal Robbins tornou-se o trêmulo e cômico Dr. Kleiner, e o administrador de Black Mesa - o mesmo que deus ordens para que o experimento desastroso de Half-Life 1 fosse adiante - tornou-se o Dr. Breene, o vilão que repreenderia Gordon por aplicar mal seu doutorado em física teórica. De acordo com Laidlaw, se Gordon simplesmente aparecesse neste futuro distópico, já que ele é um personagem mudo sem características distintivas próprias, como saberíamos que era o mesmo protagonista? O que nos deu essa resposta foi a construção de uma comunidade em torno dele, com personagens que nós - os jogadores - conseguimos ver durante o primeiro jogo, que se relacionaram com ele na sequência.

Laidlaw não se lembra de nenhum debate sobre dar a Gordon uma fala enquanto os personagens ao seu redor evoluíam. Em vez disso, os colegas dele começaram a fazer piadas sobre o seu silêncio.

"Tínhamos o exemplo de Duke Nukem e queríamos fazer o oposto daquilo. Nossa visão original para Gordon é que nem mesmo o mostraríamos na arte da caixa do jogo. Queríamos que o jogador trouxesse sua imaginação para esse personagem e que falasse consigo mesmo enquanto joga, que ele fosse a voz de Gordon."

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A falta de seriedade nos jogos veio de muitas formas, incluindo um vortigaunt cantor escondido por um caminho secundário do mapa, cujo canto terminava com uma tosse seca. A ideia dessa piada veio do fato de que Gabe estava sempre praticando seu canto enquanto trabalhava, praticando no elevador e no estacionamento.

Dr. Breen se mostrou um antagonista fascinante - um colaborador alimentando lentamente seus próprios cidadãos para os Combine, estes que realmente acreditavam que o apaziguamento era a melhor esperança da humanidade. Falando para a Cidade 17 através dos telões, ele era um racionalista e não um populista - oprimindo com apelos a razão, e não a emoção.

"Sabíamos que teríamos esses monólogos rodando no fundo das cenas para uma textura auditiva. Quando você escreve algo assim, precisa se convencer de que talvez haja alguma substância nesses argumentos. Breen foi influenciado pelo Padre Karras, um sociopata de Thief II: The Metal Age. Ele fornece um programa de rádio incrível enquanto você está se esgueirando fazendo coisas de ladrão. Fiquei chocado comigo mesmo quando voltei anos depois e ouvi aquelas transmissões de Karras e percebi quantas ideias tirei de Thief."

A própria Cidade 17 foi definida pelo diretor de arte búlgaro Viktor Antonov, que guiou a Valve em direção às características silenciosamente devastadoras da repressão na Europa Oriental. Viktor trouxe um estilo visionário que catalisou muitos experimentos que fizeram até o momento de sua chegada, para que pudessem parar de hesitar, escolher uma abordagem e começar a aprimorar.

Nas expansões episódicas que se seguiram ao lançamento de Half-Life 2, à medida que a lenda do "Homem Livre" (Free Man, trocadilho com o nome de Gordon) crescia, Laidlaw jogava cada vez mais com o fato de que o jogador estava sempre improvisando. "Ainda bem que você sabe o que está fazendo," disse Alyx enquanto você desaparecia no coração da Cidadela da Cidade 17 para evitar que seu núcleo radioativo explodisse. Gordon não tinha nenhum plano concreto e, até certo ponto, nem seu escritor - que empregou a prisão de Gordon pelo G-Man como uma ferramenta para garantir que o protagonista sempre pudesse ser "desativado" para mais tarde.

"Não tenho certeza se gostei. Eu simplesmente não sabia o que podíamos fazer a respeito, dada a forma como os jogadores deveriam se desenrolar, como uma série de produtos entregues ao longo do tempo. Half-Life 1 deveria ser um único jogo, então a vaga resolução em seu final era boa para o que era. Quando vimos que isso tudo iria levar a algum lugar, tivemos que nos perguntar: onde? Você está pensando se algum dia haverá outro jogo e se esta série vai durar para sempre. Cada um desses cenários exige um tipo diferente de estratégia - você converge ou você se abre?"

O melhor que a Valve pôde fazer foi se apegar a uma filosofia de investir em tecnologia de ponta para criar jogos envolventes e, em seguida, tomar decisões de história para apoiar o que eles construíram.

"A história nunca impulsiona a tecnologia. Sempre esperei que tropeçássemos em uma forma mais expansiva para contar histórias no meio FPS, que permitisse fazer mais do que atirar ou apertar botões ou empurrar caixas. No fim das contas, simplesmente me cansei do FPS como uma forma de contar histórias, e me tornei menos interessado em tentar resolver os problemas da história inerentes ao estilo de narrativa de Half-Life."

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Laidlaw apenas imaginou uma história para a série até o final de Half-Life 2: Episódio 3, que ele nunca conseguiu fazer. Pouco antes de deixar a Valve em 2016, porém, ele estava liderando um projeto inicial de realidade virtual chamado Borealis, em homenagem ao infame quebra-gelo da Aperture Sciense que é citado em Half-Life 2: Episódio 2. De acordo com ele, na época ainda era muito cedo para construir qualquer coisa em RV, pois as pessoas ainda estavam lutando com as ferramentas básicas de que precisariam para iniciar o projeto, e então tudo evaporou rapidamente.

O futuro crossover entre os mundos de Half-Life e Portal não foi uma ideia de Laidlaw.

"Eu não queria que isso acontecesse na verdade. Eu apenas tive que reagir graciosamente ao fato de que este rumo estava sendo tomado independente da minha decisão. Não fazia sentido, exceto do ponto de vista de recursos restritos. Portal precisava de arte e, em vez de se debater eternamente em busca de algo novo, acabou se baseando em algo que parecia muito combinado."

A conexão entre os dois universos já estavam bem avançada antes de Laidlaw perceber que teria consequências indiretas para o universo de Half-Life. Tudo o que podiam fazer era tentar incorporar os dois universos de alguma forma. Isso consequentemente deu aos dois universos uma escala menor, mas do ponto de vista da marca da franquia, isso é bom. Laidlaw acabou criando um cenário na qual poderiam conectar a Aperture e Black Mesa, escrevendo algumas histórias legais e que serviam de plano de fundo em longo prazo.

O plano de Laidlaw para o resto da história de Half-Life era, durante o projeto Borealis, "muito vago e difuso".

"É importante dizer que cada história que fizemos foi algo que descobrimos ao longo do caminho, como um time, e não como algo que eu tinha uma ideia e de alguma forma levava as pessoas a executar. A única maneira de descobrir a história de Half-Life era fazendo o jogo. Não há razão para pensar que algo que coloquei no papel teria alguma relação com um produto final."

Mas é claro que Laidlaw finalmente colocou o Episódio 3 no papel - e publicamente. Logo após sua aposentadoria, em agosto de 2017, o autor postou um conto epistolar em seu site, na voz de Gertrude Fermont, PhD. Aqui está o conto publicado:

"Querida Playa, espero que estar carta te encontre bem. Já posso ouvir sua reclamação: 'Gertie Fremont, não ouvimos falar de você há anos!' Bem, se quiser ouvir desculpas, tenho muitas, a maior delas sendo que estive em outras dimensões e outros enfeites, incapaz de alcançá-los por meios habituais."

Pseudônimos a parte, o que se seguiu foi claramente reconhecível como um esboço para a aventura inédita de Half-Life que encerraria os fios pendentes da história do Episódio 2. A carta foi amplamente interpretada como uma admissão de que os jogadores nunca conseguiriam ver essa conclusão de forma interativa. Hoje, Laidlaw se arrepende de tê-la publicado.

Teria sido melhor, diz ele, ter guardado para si mesmo e lidado com seu isolamento de uma forma que não refletisse em seu antigo empregador.

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"Eventualmente minha mente teria se acalmado e eu teria saído do outro lado muito menos envergonhado. Acho que isso causou problemas para meus amigos e tornou a vida deles mais difícil. Também criou a impressão de que, se houvesse um Episódio 3, teria sido algo parecido com o meu esboço, enquanto na verdade todo o desenvolvimento da história real só pode acontecer durante o desenvolvimento do jogo. Então o que as pessoas conseguiram não foi o Episódio 3. Em vez disso, era apenas um lapso de onde eu estava na época: enlouquecido. Realmente não há outra explicação."

Após isso, Laidlaw manteve distância de Gordon ou Gertie. Ele não deu uma olhada em Half-Life: Alyx, apesar dos relatos dizendo o contrário, mas mandou seus cumprimentos para os escritores.

"Eu não gostaria que ninguém me questionasse, e eu tinha total confiança em Jay Pinkerton e Erik Wolpaw para fazer um bom trabalho inventivo. Pretendia jogá-lo em algum momento, mas nunca tive um PC, então estou começando a pensar que nunca o jogarei. Nunca mais preciso ver outro soldado Combine, nem mesmo em RV. O último lugar na terra para a qual eu gostaria de voltar é a Cidade 17. Eles bombardearam Black Mesa por causa de mim, só para não ter que vê-la de novo!"

Laidlaw tinha a fantasia de que tendo se aposentado dos jogos, ele voltaria ao seu trabalho original e voltaria a publicar romances. Em 2018, vivendo um bloqueio pós inundação em Kauai, ele escreveu Underneath The Oversea - o ponto alto das lições que aprendeu ao escrever diálogos e planejar aventuras na Valve. Apesar de seu livro ter sido rejeitado em todos os lugares que seu agente passou, ele o publicou no Kindle, e agora vive trabalhando em suas músicas.

No entanto, as histórias de Laidlaw têm entretido milhões de pessoas - mesmo que, como Gordon, ele muitas vezes opte por tirar sua voz e deixar os corredores falarem por si só.

"Desde minha primeira visita à Valve, tive muitas conversas com pessoas que compartilhavam minha visão de integrar narrativa e level design - especificamente, como você faria essa arquitetura contar sua história. Eu só queria pensar na experiência do FPS. Parecia o mais envolvente e interessante para a narrativa, porque colocava você bem no meio de uma história da mesma forma que um romance."

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Esta entrevista foi originalmente publicada pelo portal Rock Paper Shotgun, mas achei interessante traduzi-la para o site por fins de curiosidade. Sempre amei Half-Life desde que joguei pela primeira vez, então nada melhor do que compartilhar para mais pessoas as informações sobre o universo incrível dessa franquia.

Gabr1elKK
Gabr1elKK #ZigEvil

Fã de games em geral, mas meu estilo favorito é sempre o bom RPG. Meus jogos favoritos são Metal Gear Solid 3, Disco Elysium, e Red Dead Redemption.

Crente de Tarantino e devoto de From Software.

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