A história de Half-Life, pela visão de Marc Laidlaw
"Eu estava maluco", diz o escritor de Half-Life, Marc Laidlaw, sobre sua decisão de postar a história de Half-Life 2: Episódio 3 como uma fanfic. "Eu estava vivendo em uma ilha, totalmente desligado dos meus amigos e da comunidade criativa nas últimas duas décadas, estava totalmente fora de contato e não tinha ninguém para me falar o contrário. Parecia uma coisa divertida de se fazer... e então eu fiz."
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Laidlaw descobriu essa comunidade pela primeira vez em meados dos anos 90, no escritório da Valve, onde Gabe Newell e sua equipe já estavam trabalhando em Half-Life.
Half-Life já era reconhecível como o FPS que mudaria tudo para sempre: o desastre no laboratório do governo, a brecha dimensional, a batalha para chegar até Xen e acabar com uma invasão alienígena. Originalmente a Valve planejava contar a história de uma forma mais tradicional por meio de cutscenes em terceira pessoa e cinemáticas. Mas quando o tempo acabou, a equipe dobrou a perspectiva ininterrupta em primeira pessoa e encontrou o que deixaria tudo ainda melhor.
Essa solidão tornou-se uma característica definitiva na campanha, que só concedia a você amigos temporários - uma sucessão interminável de ligações com uma IA. Na verdade, pelos padrões dos jogos atuais, existe pouco diálogo em Half-Life. Em vez disso, Laidlaw fez com que a equipe de desenvolvimento explicasse as histórias que eles estavam tentando contar e os ajudou a resolver problemas na narrativa através do level design.
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É essa abordagem que resultou no fluxo que é a marca registrada de Half-Life e seu ritmo perfeito - além das clássicas partes de comédia negra onde os cientistas eram puxados para o teto ou dutos de ventilação, e então arrotados em pedações pelo chão. A ficção contínua e consistente de Half-Life te deixava com a sensação de que estava passando por uma seção transversal de um mundo maior, em vez de um conjunto de níveis curtos e rápidos. Em nenhum outro momento isso é mais visível do que na famosa abertura do jogo, onde Gordon Freeman viaja de bonde pelo seu local de trabalho pouco ortodoxo e intimidador. Isso aconteceu quando Laidlaw e o designer de níveis Brett Johnson decidiram consertar algumas das áreas arruinadas do laboratório e apresentá-las para o resto da equipe.
Os NPCs em Half-Life eram primordiais. Além do misterioso G-Man, todos os outros personagens estavam repetindo arquétipos - cientistas e seguranças que compartilhavam as mesmas vozes. Para Half-Life 2, Newell encarregou a equipe da Valve de atualizar esses personagens, transformando-os de autômatos para pessoas - desenvolvendo características faciais realistas e bocas que se movimentavam da forma certa para combinar com suas falas. Para isso a equipe de narrativa precisou escrever uma história que trabalhava em conjunto com essas ideias, com diálogos maiores e melhores para tornar os personagens mais ricos. Como resultado, o escritor e sua equipe receberam Gordon na família de Eli e Alyx Vance. Naquela época, era uma grande reviravolta - os jogos de ação não tentavam se envolver com um ambiente tão "doméstico", mas Laidlaw considera a família a "unidade dramática básica".
A equipe científica mais ampla de Black Mesa também se tornou um tipo de família, apesar de mais disfuncional. O cientista genérico de Hal Robbins tornou-se o trêmulo e cômico Dr. Kleiner, e o administrador de Black Mesa - o mesmo que deus ordens para que o experimento desastroso de Half-Life 1 fosse adiante - tornou-se o Dr. Breene, o vilão que repreenderia Gordon por aplicar mal seu doutorado em física teórica. De acordo com Laidlaw, se Gordon simplesmente aparecesse neste futuro distópico, já que ele é um personagem mudo sem características distintivas próprias, como saberíamos que era o mesmo protagonista? O que nos deu essa resposta foi a construção de uma comunidade em torno dele, com personagens que nós - os jogadores - conseguimos ver durante o primeiro jogo, que se relacionaram com ele na sequência.
Laidlaw não se lembra de nenhum debate sobre dar a Gordon uma fala enquanto os personagens ao seu redor evoluíam. Em vez disso, os colegas dele começaram a fazer piadas sobre o seu silêncio.
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A falta de seriedade nos jogos veio de muitas formas, incluindo um vortigaunt cantor escondido por um caminho secundário do mapa, cujo canto terminava com uma tosse seca. A ideia dessa piada veio do fato de que Gabe estava sempre praticando seu canto enquanto trabalhava, praticando no elevador e no estacionamento.
Dr. Breen se mostrou um antagonista fascinante - um colaborador alimentando lentamente seus próprios cidadãos para os Combine, estes que realmente acreditavam que o apaziguamento era a melhor esperança da humanidade. Falando para a Cidade 17 através dos telões, ele era um racionalista e não um populista - oprimindo com apelos a razão, e não a emoção.
A própria Cidade 17 foi definida pelo diretor de arte búlgaro Viktor Antonov, que guiou a Valve em direção às características silenciosamente devastadoras da repressão na Europa Oriental. Viktor trouxe um estilo visionário que catalisou muitos experimentos que fizeram até o momento de sua chegada, para que pudessem parar de hesitar, escolher uma abordagem e começar a aprimorar.
Nas expansões episódicas que se seguiram ao lançamento de Half-Life 2, à medida que a lenda do "Homem Livre" (Free Man, trocadilho com o nome de Gordon) crescia, Laidlaw jogava cada vez mais com o fato de que o jogador estava sempre improvisando. "Ainda bem que você sabe o que está fazendo," disse Alyx enquanto você desaparecia no coração da Cidadela da Cidade 17 para evitar que seu núcleo radioativo explodisse. Gordon não tinha nenhum plano concreto e, até certo ponto, nem seu escritor - que empregou a prisão de Gordon pelo G-Man como uma ferramenta para garantir que o protagonista sempre pudesse ser "desativado" para mais tarde.
O melhor que a Valve pôde fazer foi se apegar a uma filosofia de investir em tecnologia de ponta para criar jogos envolventes e, em seguida, tomar decisões de história para apoiar o que eles construíram.
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Laidlaw apenas imaginou uma história para a série até o final de Half-Life 2: Episódio 3, que ele nunca conseguiu fazer. Pouco antes de deixar a Valve em 2016, porém, ele estava liderando um projeto inicial de realidade virtual chamado Borealis, em homenagem ao infame quebra-gelo da Aperture Sciense que é citado em Half-Life 2: Episódio 2. De acordo com ele, na época ainda era muito cedo para construir qualquer coisa em RV, pois as pessoas ainda estavam lutando com as ferramentas básicas de que precisariam para iniciar o projeto, e então tudo evaporou rapidamente.
O futuro crossover entre os mundos de Half-Life e Portal não foi uma ideia de Laidlaw.
A conexão entre os dois universos já estavam bem avançada antes de Laidlaw perceber que teria consequências indiretas para o universo de Half-Life. Tudo o que podiam fazer era tentar incorporar os dois universos de alguma forma. Isso consequentemente deu aos dois universos uma escala menor, mas do ponto de vista da marca da franquia, isso é bom. Laidlaw acabou criando um cenário na qual poderiam conectar a Aperture e Black Mesa, escrevendo algumas histórias legais e que serviam de plano de fundo em longo prazo.
O plano de Laidlaw para o resto da história de Half-Life era, durante o projeto Borealis, "muito vago e difuso".
Mas é claro que Laidlaw finalmente colocou o Episódio 3 no papel - e publicamente. Logo após sua aposentadoria, em agosto de 2017, o autor postou um conto epistolar em seu site, na voz de Gertrude Fermont, PhD. Aqui está o conto publicado:
Pseudônimos a parte, o que se seguiu foi claramente reconhecível como um esboço para a aventura inédita de Half-Life que encerraria os fios pendentes da história do Episódio 2. A carta foi amplamente interpretada como uma admissão de que os jogadores nunca conseguiriam ver essa conclusão de forma interativa. Hoje, Laidlaw se arrepende de tê-la publicado.
Teria sido melhor, diz ele, ter guardado para si mesmo e lidado com seu isolamento de uma forma que não refletisse em seu antigo empregador.
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Após isso, Laidlaw manteve distância de Gordon ou Gertie. Ele não deu uma olhada em Half-Life: Alyx, apesar dos relatos dizendo o contrário, mas mandou seus cumprimentos para os escritores.
Laidlaw tinha a fantasia de que tendo se aposentado dos jogos, ele voltaria ao seu trabalho original e voltaria a publicar romances. Em 2018, vivendo um bloqueio pós inundação em Kauai, ele escreveu Underneath The Oversea - o ponto alto das lições que aprendeu ao escrever diálogos e planejar aventuras na Valve. Apesar de seu livro ter sido rejeitado em todos os lugares que seu agente passou, ele o publicou no Kindle, e agora vive trabalhando em suas músicas.
No entanto, as histórias de Laidlaw têm entretido milhões de pessoas - mesmo que, como Gordon, ele muitas vezes opte por tirar sua voz e deixar os corredores falarem por si só.
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Esta entrevista foi originalmente publicada pelo portal Rock Paper Shotgun, mas achei interessante traduzi-la para o site por fins de curiosidade. Sempre amei Half-Life desde que joguei pela primeira vez, então nada melhor do que compartilhar para mais pessoas as informações sobre o universo incrível dessa franquia.
Fã de games em geral, mas meu estilo favorito é sempre o bom RPG. Meus jogos favoritos são Metal Gear Solid 3, Disco Elysium, e Red Dead Redemption.
Crente de Tarantino e devoto de From Software.