O presente artigo tem como objetivo incitar o debate sobre a inserção de elementos da cultura brasileira na criação de jogos. Uma janela para a discussão entre aspirantes, desenvolvedores independentes e público jogador em geral.
O ideal de jogo eletrônico teve a sua concepção gradualmente modificada ao longo dos mais de 50 anos de existência dessa indústria. Tecnologia e arte se fundiram para ampliar a experiência do jogador e criar uma nova mÃdia. O que era apenas um punhado de luzes projetadas em um televisor na década de 70, adquiriu um enredo, incorporou novas formas de narrativa em uma constante ressignificância, se desdobrando um imenso leque de diferentes gêneros de jogos.
A atual concorrência presente no mercado de jogos eletrônicos tem impulsionado os desenvolvedores a buscar elementos que concedam uma identidade Ãmpar para os seus projetos. Sejam mecânicas, enredo, elementos narrativos ou estéticos, sair do habitual pode representar uma oportunidade única de destaque entre tantos tÃtulos que disputam a atenção do público.
Nessa corrida pela "singularidade", vale tudo. Inclusive apelar cenários inusitados, como o caso de God of War 4, que abandona a tradicional mitologia grega e abraça a nórdica, trazendo novos ares e possibilidades futuras à franquia. É nesse ponto que surge o questionamento: Onde está o Brasil nesse mercado? Por quê nossos desenvolvedores usam elementos de outras culturas como referências? Será que nos falta subsÃdios ou fomos condicionados a esse formato pasteurizado?
(Imagens do Jogo AranÃ, durante um combate entre a protagonista e uma releitura da figura do Saci. TÃtulo em desenvolvimento pela Diorama Digital)
Quando se fala de folclore brasileiro, certamente a primeira imagem que vem a cabeça é a dos personagens infantilizados do SÃtio do Pica-Pau Amarelo. O escritor Monteiro Lobato foi uma importante figura na disseminação de parte das criaturas mÃticas de nossa terra, mas ao mesmo tempo, responsável pelo engessamento da imagem do nosso folclore.
(Xilo, game lançado em 2013. Desenvolvido pela Caipora Digital)
"Aaaahhhh...mas o nosso folclore é sem graça!", é o que muitos dizem. Porém, será que o apreço pela mitologia grega seria o mesmo, se dependêssemos apenas dos escritos da Odisseia de Homero, sem Xena ou Kratos? Será que a admiração por Thor e outros deuses nórdicos teria a mesma intensidade atual sem a indústria dos quadrinhos e cinema de ação? Será que os "otakus" ocidentais cultivam o mesmo entusiasmo entre a apreciação dos traços das tradicionais pinturas japonesas e o estilo de desenho presente nos mangás e animações modernos? Será que a saga através dos cÃrculos do inferno seria tão empolgante se no lugar de Dante's Inferno existisse apenas a Divina Comédia de Dante Alighieri?
Ja parou pra pensar que talvez nos falte apenas uma releitura de nosso folclore? É necessário romper com a imagem estabelecida pelo imaginário popular "Pós-Monteiro Lobato". Um exemplo do potencial inexplorado é a figura do Saci. E se o personagem travesso e cômico desse lugar a uma criatura elemental ou a uma figura steampunk militarizada?
Se nossos desenvolvedores alcançaram maturidade suficiente para aplicar essa desconstrução e criar uma releitura moderna e cativante, ai já é palco para uma outra discussão. Por hora, fica apenas a reflexão sobre as oportunidades presentes em nossas raÃzes culturais e como isso pode ser bem aproveitado, a exemplo de outras mÃdias, como o caso do álbum Roots de 1996 da banda Sepultura.
E você caro leitor, já teve contato com algum game que fazia uso de elementos nacionais na arte ou enredo? Compartilhe a sua experiência e opinião sobre o assunto.
BÔNUS INSPIRACIONAL
A seguir, uma pequena explanação sobre cenários, lendas e situações observadas em território nacional que poderiam muito bem servir de plataforma para a criação de um enredo obscuro para obras de diversas mÃdias, incluindo a de jogos eletrônicos.
1. Fordlândia.
Trata-se de um pequeno municÃpio do interior do estado do Pará que foi palco de um grande projeto da industria de automóveis Ford. Os detalhes sobre o surgimento e o declÃnio desse projeto podem ser facilmente encontrados em livros escolares de história. O que pouca gente sabe, é que os cadáveres dos trabalhadores estrangeiros que morriam em Fordlândia, eram enviados de volta ao exterior, e eram usados como artifÃcios para tráfico de ouro e pedras preciosas.
Somente anos após a desativação do projeto, é que foram descobertos túneis sob as construções de Fordlândia. Expecula-se que as instalações subterrâneas foram desenvolvidas para a extração de minério de forma clandestina.
2. Paranapiacaba
Quase uma Silent Hill Tupiniquim, é um distrito do municÃpio de Santo Andre, no interior paulista, assolada por uma névoa densa. A localidade se desenvolveu com base em uma concessão para exploração do sistema ferroviário local por um grupo estrangeiro.
A lenda local do Véu da Noiva, diz que a neblina densa é a manifestação sobrenatural de um fantasma atordoado. Dizem que a filha de um operário e o filho de um engenheiro viviam um romance proibido por suas famÃlias e decidiram casar em segredo. Porém, no dia do casamento, o noivo foi preso em um porão pelo pai da jovem. A moça, que esperava no altar, desolada pelo atraso do rapaz, pensou ter sido abandonada e se lançou do alto de um dos viadutos da rodovia, ainda vestida de noiva.
3. Canibais de Garanhuns
Por mais absurdo que pareça, um trio de criminosos foi preso sob a acusação de matar, comer e vender salgados recheados com carne de suas vÃtimas. Os crimes bizarros aconteceram entre 2008 e 2012, no nordeste brasileiro. Hoje os acusados estão presos e cumprem uma longa pena. De acordo com relatos, os criminosos alegaram fazer parte de uma seita que prega o controle populacional através do canibalismo.