O segredo do sucesso de UNDERTALE

#Artigo Publicado por Anônimo, em .

Artigo escrito por Alexandre Rothier.

Nos primeiros dez minutos de Undertale, mentalmente revirei os olhos pra ele de desgosto. Vou evitar spoilers ao máximo nesse texto, já que se tornou parte do decoro das pessoas que escrevem sobre Undertale evitar spoilers dele mais do que o normal (e eu não sou nada além de decoroso). Resumindo bastante, o que me desagradou foi uma sequência no começo do jogo onde você recebe uma série de puzzles simples, mas totalmente formulados, pra em seguida ser obrigado a assistir outro personagem solucionar eles por você. Entendi isso como uma critica a tendência de jogos modernos a pegar na sua mão e ensinar exaustivamente o que fazer, mesmo quando você já entendeu, e não engoli isso muito bem. "Lá vem um jogo de um game dev que acha que entendeu todas as convenções de jogos de videogame, e que acha que tem algo relevante a dizer a respeito do que ele provavelmente chama de 'a mesmice dos jogos hoje em dia'", pensei.

Demorou meia hora pra perceber que eu estava errado. Comecei a apagar o review escrito com palavras severas que eu preparava na minha cabeça naquele momento. Passei a ver o jogo sob uma ótica mais amena e menos profunda. Era um jogo, pura e simplesmente, e não uma análise neo-irônica da indústria de games. "Undertale não é uma série de subversões de gêneros e de tropes" pensei dessa vez, me sentindo aliviado por estar errado.

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Agora que destrinchei ele extensivamente posso dizer que, em algum nível, Undertale é uma série de subversões de gêneros e de tropes, o que significa que fui duplamente enganado pelo jogo. Mas fico feliz por ter sido enganado. Talvez não pareça a princípio, mas Undertale é um jogo cheio de camadas. A proposta é ousada, pra não dizer imprudente, já que ele tenta ser engraçado em seu senso de humor ocasionalmente referencial, divertido na sua jogabilidade, eloquente na sua narrativa e carismático em seu elenco. Ele tem sucesso em tudo isso, ainda que em graus diferentes, e ainda que demore pra que alguns desses sucessos se tornem óbvios.

Toby Fox, o criador do jogo, passa a impressão de ser uma personalidade criada nas entranhas espúrias do 4chan e amadurecida emocionalmente pela vida real, o que talvez pareça contraditório. Contexto: anunciar um jogo inspirado em Earthbound faz com que a internet já prepare uma voadora com os dois pés no peito, afinal, ninguém sai impune tentando recriar a Fera Bit dos jogos de nicho (liderando o ranking ao lado de God Hand), mas Toby obviamente entende isso, e ele entende seu público mais crítico, o muito pentelho e auto-intitulado gamer hardcore (como eu). Ele entende quando deve subverter as expectativas do jogador mais cínico, que acha que já viu de tudo e que nunca espera que suas expectativas sejam subvertidas. Ao mesmo tempo, Fox sabe agradar ao consumidor de baixa manutenção, mostrando um certo grau de know-how da comunidade da internet e uma dose de pé-no-chão. Ele entende que tentar fazer um jogo profundo, engraçado e divertido geralmente traz risadinhas debochadas de gamers perpetuamente incrédulos (como eu), e por isso ele não leva seu próprio jogo a sério quando não deve, e o faz quando deve, com precisão cirúrgica. Toby Fox essencialmente fez um jogo muito ambicioso que esconde isso muito bem fingindo despretensão. O resultado é um jogo, possivelmente, pra todos.

Pra ser franco, terminando o jogo pela primeira vez, o que deve levar em torno de cinco horas, você provavelmente não vai achar uma experiência transcendental. Se eu for mais rígido, diria até que ele pode parecer de acima da média a medíocre. Em primeira análise a jogabilidade é criativa com seu sistema de batalha único e puzzles modestos. O enredo é interessante, pontuado por momentos emocionantes, que por sua vez são melhorados pela trilha sonora excelente. Mas de uma forma geral nada disso parece justificar o jogo como digno de competir com outros títulos de peso que saíram ao longo do ano. O que costuma marcar o jogador nessa primeira análise é o sistema de batalha, que é uma mistura excelente do gênero bullet hell com um toque de RPG japonês, e talvez só por isso a primeira run de Undertale deva deixar a maioria dos jogadores satisfeitos, mas não muito mais do que isso.

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Em runs subsequentes a "história interessante" se transforma em algo especial. É uma coisa que faz mais sentido no contexto do jogo do que num texto argumentativo-dissertativo. A verdade é que a primeira vez que você termina Undertale, você não TERMINOU Undertale. Não de verdade. E na segunda vez, discutivelmente, você AINDA não vai ter terminado Undertale. O consenso geral é que pra terminar ele, você precisa fazer os três caminhos principais do jogo, e esses caminhos são definidos pelas suas escolhas. Existem escolhas que importam, mudam completamente a narrativa, adicionam dados a sua percepção do jogo. Existem detalhes, quase easter eggs, que passam completamente despercebidos pela maioria dos jogadores; detalhes que também afetam sua interpretação de Undertale. Esses dados e detalhes elevam-no a mais que uma paródia engraçadinha de RPGs clássicos, o que ele fatalmente seria se fossemos levar em conta só a primeira run. Existe lore em Undertale. Lore em um jogo de menos de vinte horas. Existe mais história nele do que você vai conseguir encontrar em apenas três runs, e talvez exista mais história nele do que uma pessoa sensata possa experienciar sem procurar um guia na internet.

Ao longo de suas três runs essenciais, Undertale vai se mostrando uma história sensível sobre alteridade, e um pouco mais subtextualmente, sobre perda, surpreendente na potência das suas emoções. Ainda que pareça contra-intuitivo ter que terminar mais de uma vez até entender ela por completo (e só parece contra-intuitivo por que realmente o é), isso é justificado pelo conjunto da obra. É difícil de falar sobre um jogo onde spoilers pesam tanto, e ainda mais difícil de falar de um jogo desse calibre sem cair em hipérboles, mas ambos são consequência da prosa extremamente bem executada por Toby Fox. Undertale foi feito pra ser uma surpresa. "A mão debaixo da saia da Mona Lisa" como diria Al Pacino em O Advogado do Diabo. Ele é um jogo de complexidade rara, feito pra que seus jogadores possam engajar em conversas sobre suas experiências sutilmente diferentes depois da sua conclusão.

Eu posso escrever três mil palavras e não fazer jus ao jogo, ou você pode dedicar por volta de vinte horas a ele e ter uma das melhores experiências em videogames de 2015.

Anônimo
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